Perturbações e incompetência
(Gaspar on fire - imagem da net)
No seu livro de curtas histórias, “Tipos
de Perturbação”, Lydia Davis conta uma, intitulada “Imperturbável”. Vou adaptá-la ao nosso ministro da finanças, pois
poder-lhe-á assentar (e não só a ele) que nem luva.
Imaginemos esse caricato ministro, tão redondamente “sui generis”, passeando à noite numa rua
silenciosa. Olhando distraído verifica que um edifício mostra incipiente foco
de incêndio. Calmamente, em passo ligeiro, e meditabundo decide procurar um
extintor, noutro prédio vizinho, algo afastado. Encontrando o extintor, ainda na
maior das calmas e a pé, volta para o edifício do incêndio. Aí chegado, com o
incêndio já incontrolável pelo simples extintor, exclama: “provavelmente terei
chegado tarde!” Indiferente, larga o extintor e parte em busca das notícias do
dia seguinte.
Tal como este indiferente e pouco
reactivo ministro, todos os incendiários que temos no poder viram e vêem o “edifício”
em chamas, mas divertem-se à procura dum simples extintor que, na hora das
cinzas, restará, qual despojo inútil mas funcional, num autêntico cemitério de
destruição consentida e alimentada. Assim vai correndo o “culpado” tempo, nesta
lusa sarça ardente.
(“Mulheresa na janela” de Emiliano
Di Cavalcanti)
Outra história que me ocorre hoje, é uma que o meu pai, há muitos anos
contava na sua oficina de alfaiataria, era eu adolescente. Estando presente
decorei-a e ainda hoje me rio quando a relembro e conto aos amigos que a
desconhecem.
Fazendo parte do anedotário sarcástico e satírico atribuído a Bocage,
obviamente terá a sua vertente menos pudica e mais atrevida, numa redondilha de
bela construção que até hoje não vi escrita em qualquer lugar, incluso nas
minhas divagações pelo Google.
Neste conto atrevido podemos avaliar a eficácia de alguém que domina o
assunto e não sofre de incompetência, nem se sente perturbado nas ocasiões de
maior impasse, essencialmente quando algum chico-esperto o procura colocar em
cheque.
Depois de uma estadia agitada no
Oriente, Bocage regressou a Lisboa, em 1790. Aí, durante os dez anos
subsequentes levou vida boémia, de franco convívio com o “bas-fond” da cidade. A
sua típica forma de vida, extroversão, frontalidade, irreverência e ironia granjearam-lhe
um enorme grupo de admiradores incondicionais.
Nas suas deambulações, eram
frequentes os dias que Bocage passava por debaixo da janela dum prédio onde,
muitas vezes, se debruçavam, àquela hora, duas belas jovens, filhas de um
abastado mercador judeu. Com os decotes algo a jeito, acicatavam os olhares do
poeta vadio que logo lhes lançava uns galanteios, quiçá uns versinhos, que as
deixavam delambidas e deslumbradas. Os amigos de Bocage provavelmente
acolitariam a festa.
Certo dia o judeu decidiu fazer
uma festa nos seus aposentos onde teria muitos convidados. As filhas, sabendo
que o pai iria convidar muitas pessoas importantes da época, pediram-lhe que
permitisse um convite ao poeta, para que este declamasse alguns poemas seus e
quiçá alguns improvisos. O pai, que já tanto ouvira falar desse poeta boémio e
desbocado, lá se conformou, mas colocou uma condição ao poeta. Este teria que
improvisar uma quadra, cujo mote obrigatório seria da autoria do mercador
judeu.
Assim, conversou e combinou tal
desafio com o poeta que concordou, já que teria oportunidade de conviver com as
duas jovens e belas judias, além de poder mostrar muito do seu estro.
Chegado o dia da festividade
judaica lá apareceu o poeta que foi convidado a sentar-se na mesa dos convivas
especiais. Depois de lauta refeição, muitos olhares furtivos e piscadelas
malandras, Bocage aguardava o momento do seu protagonismo.
Primeiramente o anfitrião
apresentou-o aos comensais e, após uma breve explicação, pediu ao dotado poeta
que recitasse alguns dos seus poemas. Por questões de respeito e delicadeza,
Bocage não quis recitar, em festa religiosa judaica, algo de mais satírico ou
irreverente, pelo que se limitou a declamar poemas mais apropriados à ocasião.
Todavia, após ligeiro intervalo,
o judeu, sabendo que o poeta era católico, mesmo que pouco afoito, lançou-lhe o
mote para a redondilha de improviso. Com algum sorriso malicioso e ar
exibicionista ordenou-lhe:
- Caro poeta Bocage o mote para a
sua quadra é este: “Jesus Cristo entre as virilhas”.
Bocage, algo espantado com a
ousadia e malícia do anfitrião, acedeu e subiu para a tribuna improvisada.
Virando-se, quase ostensivamente, para o judeu, perante o silêncio circundante,
com voz tonitruante improvisou:
“Se tu me desses, judeu,
A melhor das tuas filhas
Eu dava-lhe o que me deu
Jesus Cristo, entre as virilhas.”
Imagino o que poderá ter
acontecido a tantos estômagos abarrotados. Seria bom de ver o ar furibundo do
judeu e os comentários dos presentes. Bocage deu-lhe uma lição de cortesia e
quase poderia desabafar: querias farra, judeu? Então (e com gesto de Zé-Povinho) toma!
Comentários
Li o seu comentário lá no UJM e é até quase aviltante, não é? O que deveria ser um exercício privado, em que deveria haver um respeito pela competência, ser assim transformado num exercício contabilístico. Caminhámos para isto? esvaziámos de conteúdo a nossa vida...
Mas saibamos manter-nos lúcidos e direitos, saibamos continuar a olhar de frente e cerrar os punhos.
Muita saúde e felicidade também para si, dbo. É sempre um prazer ler o que escreve.