Camões...uma língua, muitas pátrias

(imagem da net)
Fiquei deveras feliz quando soube da atribuição do Prémio Camões 2013 a Mia Couto. Como quase toda a gente que o lê, creio que a sua marca vê-se no timbre da criação de novos termos, essencialmente na forma de prefixar palavras e dourá-las com aprazíveis e bem sonantes rendilhados. Aproveitando-se da incipiente linguagem dum povo que esteve cerca de quinhentos anos colonizado, mas nem português lhe ensinaram, foi-se servindo duma terminologia de iniciados, quase crioula, com adaptações que mostram uma sonoridade musical e inegável significância.
Como médico e talvez um sonhador, aproveito um excerto engraçado do livro “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” (2008), em que o doutor Sidónio Rosa fala com Bartolomeu sobre sonhos…


                                                                (imagem da net)
— Agora, conforme assisto na TV, há umas pretas loiras, de olhos azuis. Traga-me uma dessas. Doutor.
Que ele ansiava alvoroçar o coração, solavancar o corpo, esse seu pobre corpo que, mesmo sem substância, lhe pesava, atafulhado de fígado.
— Traga-me uma qualquer catorzinha, quinzezinha, mas que não fume.
— Uma que não fume?
— Mulher que fuma, para mim, é homem...
— Eu gosto que você continue sonhando, mesmo que seja com impossíveis miúdas.
— Estou sonhando em justa causa, Doutor. Porque eu, se não fosse o amor, ou melhor, se não fosse a espera do amor...
Joelhos juntos, vai olhando os pés como se contemplasse a linha do horizonte. Saudade do tempo em que tinha saúde para desprezar o próprio corpo. Agora pouca convicção lhe resta, mesmo quando se lamenta:
— Sonhar me deixa muito cansado. Dá um trabalhão danado, sonhar.
— Se o senhor não sonhasse, já teria arrumado as ferramentas na caixa.
As ferramentas estão espalhadas pelo soalho. Ele recusa arrumá-las na devida caixa.
— Fazem-me companhia — justifica assim a desordem. Dona Munda tem outra explicação para aquele caos: o marido ainda acredita poder ser chamado de emergência.
— Cure-me de sonhar, Doutor.
— Sonhar é uma cura.
— Um sonhadeiro anda por aí, por lonjuras e aventuras, sei lá fazendo o quê e com quem... Não haverá um remédio que me anule o sonho?
O médico ri-se, sacudindo a cabeça. Retira da sacola o estetoscópio, mas o doente, mal pressente a intenção, ergue-se, esquivo. Sidónio deixa escapar o aparelho que tomba entre chaves de fenda, alicates e apetrechos do ex-mecânico. Bartolomeu espreita de lado, com desconfiança de bicho:
— Todos elogiam, o sonho, que é o compensar da vida. Mas é o contrário. Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos.
— Sonhar só o faz ficar mais vivo.
— Para quê? Estou cansado de ficar vivo. Ficar vivo não é viver. Doutor.
O médico caminha, pé ante pé, por entre as ferramentas. Recupera o estetoscópio e limpa-o na ponta da bata, alheio ao olhar atento do paciente.
— Para dizer a verdade, o senhor nem devia voltar aqui.
— Não quer que volte?
— É que o senhor entra neste quarto malcheiroso e eu o vejo mais como coveiro do que meu salvador. Aqui, neste leito, eu já vou no meu próprio desfile fúnebre.
As mãos vão-se enrodilhando como se, entre os dedos magros, escondesse uma pomba viva.
— E mais. Doutor: acho que o senhor não tem nada a fazer aqui. Eu vivo tão sozinho que nem doença tenho para me acompanhar.
— Cabe-me a mim avaliar das suas doenças.
— Eu hei-de morrer de nada, só por acabar de viver.
— Mas hoje não, hoje não morra que é domingo.
Sidónio sabe da rotina de Bartolomeu: domingo é dia de janela. A meio da manhã, ele se desamarra do reumatismo, ergue-se arrastoso e se encosta na luz, a contemplar a rua. Meio oculto entre os cortinados, não vê muito, quase que não escuta. Melhor assim: os sons desfocados já não o convocam. Apesar de tudo, vai acenando. De que vale estar à janela se não é para dizer adeus?


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