Juro...gritarei LIBERDADE

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Juro que não sei o que estou para aqui a pensar.

Jamais me passaria pela cabeça estar aqui, com os nadegueiros a lambuzar o couro deste maldito sofá laranja. O rabo não pensa, mas não falta quem nele pense. Vicissitudes!

Este maldito encourado é o pouco que me resta, depois que me levaram a casa toda, incluindo a gulosa despensa. Antes vivia bem e gastava melhor, mas nunca acima das minhas possibilidades como apregoam os bem instalados. Para mim será fácil culpabilizar o meu marido que me alimentou vícios sobre vícios, orgulhando-se do seu poder económico construído à custa de empréstimos com juros esconjurados. Todavia, partilho a culpa para que esta se sinta bem casada e nunca solteira.

Certo é que a minha abúlica posição social me concedeu esta farta imagem de obesidade incipiente, mas não vivi sob as asas do meu ex. Loura, mas não burra, leccionei bastante tempo e adorei as crianças que me aturaram. Bem ou mal cumpri parte do meu fado, senti-me realizada e era auto-suficiente. Larguei o meu ofício porque outros valores familiares, e mais sérios, se alevantaram. Essencilamente cuidar dos filhos. Não sei se valeu o esforço e coragem, mas tive altos e baixos, sendo este o momento mais baixo, apesar do conforto do assento.

Sinto-me deprimida e capaz de ultrajar meio mundo e destruir outro meio. Com políticos como os que me levaram a esta triste situação, apetece-me degolar tudo quanto se movimente de ministério em ministério. Sem apoios e sem dinheiros dos clientes a firma do meu marido entrou num rodopio de insolventes. Atrás de uma desgraça outra se engatava e ao fim de algum tempo veio o desentendimento, prendado de divórcio litigante e perda de custódia dos dois filhos. Autêntica bomba atómica! Aqui, sim, poderia ter evitado a consumação dos factos. Realmente fui uma loura burra. Agora, é o que se vê. Entre paredes vazias de tudo, espaços cheios de nada, esbracejo e estatelo-me na miséria deste sofá que, para mal dos meus pecados, é de cor laranja. Malditos e estúpidos laranjas!

Eis-me aqui, mal refastelada, enfeitada de nadas, sem adereços e sem jóias de qualquer valor ou espécie. Simplesmente mulher aviltada, deprimida, revoltada.

Os tipos que me levaram as coisas disseram-me que não abusasse das debilidades do sofá mas que me enchafurdasse no seu lúgubre silêncio. Sarcasmo e ousadias para depreciar quem está na fossa.
Gosto muito de ler mas até os livros me levaram, incluindo os velhos manuais que me serviram de guia para a docência. Restam-me algumas teias de aranha pelos recantos da casa e as poeiras do meu desencanto.

Parece-me ouvir ainda o eco das casquinadas metálicas dos arrumadores que me olhavam com ar desafiante, rasando os narizes no meu peito e dardejando olhares libidinosos dum machismo abandalhado. Apeteceu-me gritar que partilharia horas de prazer se me deixassem a casa recheada, mas, nestas horas de merdice, o desânimo e a crueldade afogam o verdadeiro sentido da realidade.

Olhando qualquer ângulo, esbarro-me no verde turquesa das paredes que me afogam a alma, e deixo-me esmorecer na monotonia duma raiva abafada na impotência do momento crítico.

O azul-marinho da carpete apenas me deixa navegar a solidão e desolação dum corpo que tantas vezes ali se bamboleou em doces e saudosos suspiros.

Juro que não sei o que estou aqui a pensar, mas vou erguer-me e gritar bem alto, dentro e fora destas paredes, que o meu mundo jamais será o da clausura do pensamento ou de grilhetas na liberdade.


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