Relembrar o homem ...o Pai
(imagem da net)
Não tenho por hábito falar do meu
pai que aos 66 anos, nos idos de 93, se dignou partir de forma súbita, acossado
por falha cardíaca. Ele que até fora um homem fogoso, másculo e de excessiva
movimentação. No entanto, tal facto, aliado a comportamentos de risco e
vicissitudes de vadiagem militante, encurtaram-lhe alguns bons anos de
vitalidade possível. Acelerando o seu ritmo de vida também acelerou o fim da
mesma. Uma verdadeira “apoptose” fulgurante.
Apesar de tudo, sempre admirei
aquele homem que foi o meu pai. Além de boa figura, estava algo adiantado no
seu tempo, e com uma simples quarta classe, voluntariamente completada em
adulto, tinha conhecimentos e adquirira saberes próprios de alguém mais letrado
que o “doutor” Relvas. Contrariamente a este, também vivia noutro mundo
político, tendo sido militante de esquerda, mais concretamente do MDP/CDE e
alguns anos depois, com o 25 de Abril, integrou-se no PCP tendo, incluso,
cedido um dos seus espaços oficinais para reuniões, a partir daí.
Entretanto posso dizer que a sua
oficina de alfaiataria sempre fora, já antes da revolução dos cravos, o local
de reuniões e encontros do pessoal do contra. Durante as horas de trabalho,
quer os seus empregados quer alguns clientes crónicos que ocupavam bancos
livres ou se acomodavam no largo espaço disponível, discutiam até altas horas
assuntos variados de que a política era tema preferencial. Nos fins-de-semana
laborais, quintas e sextas-feiras, as jornadas eram contínuas, pois teriam de
compensar as ausências de segundas e parte de terças-feiras.
A rádio funcionava constantemente
e a horas menos cómodas, mais tardias mas de maior acalmia, sintonizava-se a
Rádio Moscovo, a Rádio Argel e a BBC. Cochichava-se entre baforadas e nevoeiro
de tabaco. Meu pai não se opunha que eu e o meu irmão, um ano mais velho, ali
ficássemos algum tempo a saborear comentários e expressões de pseudoliberdade
condicionada. Muitas das vezes até ficávamos a auxiliar calças, fazer bainhas e
tirar alinhavos até tardíssimo, essencialmente nos fins-de-semana de sobrecarga
aflitiva de trabalho. Resistíamos com malgadas de café traçado, pão fresco com
manteiga e, muitas vezes, um traçadinho de bagaço caseiro.
Havia também obrigatoriedade de
leituras variadas e alguns jornais, para formação e temas de discussão. Aliás
posso dizer que o meu primeiro professor foi meu pai que me ensinou a ler
quando completei os cinco anos de idade. Inscreveu-me, e a si próprio, como
sócio da biblioteca itinerante da Gulbenkian que mensalmente aparecia no local
onde se desenrolava a feira semanal da Vila das Aves.
O seu afinco à causa de um
Portugal livre e democrático, levou-o um dia aos calabouços da PIDE, onde ficou
retido uma semana. A alfaiataria fechou e apenas alguns amigos, curiosos e a
medo, vinham saber da sua ausência e procuravam, disfarçadamente colher
informações junto da minha mãe que se arrastava, plangente, por todos os recantos
da casa. Cheguei a temer que escacasse a telefonia, mas além de respeito, ela
temia imenso o meu pai que, por vezes, era demasiado agressivo e até violento.
Um machista daquela época em que as mulheres eram demasiado dependentes e
submissas, pese o facto de minha mãe ter sido uma autêntica muleta dum marido
que nada fazia, nem sabia fazer, para além do trabalho de alfaiataria. Creio que
ele até achava que perderia a masculinidade se apenas aprendesse a fazer
qualquer tarefa doméstica. Outros tempos, outros vícios e outras tolerâncias.
Como foi parar aos calabouços da
PIDE? Simplesmente porque fora apanhado, meio embriagado, a distribuir o
“AVANTE” por algumas portas da então Vila de Santo Tirso. Astuto, como sempre
fora, valeu-se dessa embriaguez para dizer que encontrara aqueles jornais num
banco do jardim e, naquele vaporoso estado, se lembrou de distribuir um jornal
porta a porta, até que se esgotassem. Mesmo assim não o largaram e durante uns
seis a sete dias, bateram-lhe com toalhas molhadas e doutras formas, pois
chegou a casa com bastantes equimoses ao fim de oito dias, na companhia do
regedor da freguesia que, tal como o pároco, fizeram depoimento em sua defesa,
aventando como provável verdade o que ele dizia. Quanto ao regedor, sei que a
minha mãe gastava da sua loja de mercearia e o meu pai era a única base para
que a oficina trabalhasse e o dinheiro aparecesse, logo, para alem de alguma
amizade havia o interesse económico. Quanto ao pároco, fiquei admirado, pois
meu pai era absolutamente indiferente à religião, bastante céptico e só foi à
igreja para se casar e para nos baptizar. Cheirou-me a pedido ou do regedor ou
de pessoas que pretendiam ajudar a minha mãe, que era bastante religiosa e nos
ensinou a viver no catolicismo, sem qualquer oposição do meu pai que mais tarde
até me deixou frequentar o seminário. Fosse porque razão fosse, a verdade é que
o homem chegou, mas muito machucado e debilitado com o pio arrepiado pelo menos
durante algum tempo, pois a vigilância pidesca aumentou por ali, nessa altura e
fez prisioneiros mais três amigos e frequentadores da alfaiataria.
Naqueles dias sempre me esquivei
um pouco de o interpelar e abordar o motivo da sua ausência e do seu deplorável
aspecto, mas mais tarde falei sobre isso, embora o tenha ouvido comentar
algumas coisas com a minha mãe.
Creio que hoje, se fosse vivo,
estaria a vomitar as entranhas com tanta safadeza política e com tão deplorável
estado a que o nosso país chegou, apesar de ter tido oportunidades para dividir
melhor a riqueza e elaborar legislação mais justa e eficaz.
Comentários
E agora o Filho tornou-se Pai e o Pai tornou-se também Avô.
A vida vai passando por nós. E as saudades vão-se tornando suaves e aqueles que amámos vão continuando a viver dentro de nós.
Felicidades, saúde e, portanto, uma vida longa e feliz!