Amor e vingança… confidências e cumplicidade
(imagem da net)
Olhei-o de soslaio enquanto
entrava no consultório. Arrastava a sombra da morte nas passadas lentas e
descompassadas. Homem dos seus cinquenta e poucos amarrotados anos de vida,
desgastada em vicissitudes e infortúnio. Apostaria que naquele corpo habitariam
mais uns quinze anos. Aspecto marasmático, em cútis de desistente da vida.
Sentado na minha frente qual
condenado à espera do veredicto, não me olhava nos olhos e parecia buscar e
seguir formigas no soalho. Três anos atrás fora gastrectomizado “a um cancro
maligno”, fez questão de contar a sua acompanhante, magricelas e algo descuidada.
No início aceitou ou ignorou a sua doença arvorando-se esperançoso. Todavia,
pouco a pouco, tomava sumiço e estiolava, a olhos vistos.
Foi internado e indagou-se o
caso. Num esmiuçar de imagens, colheitas de sangue e expectoração, concluiu-se:
o homem tem metástases pulmonares e hepáticas.
Assim, com tal desdita, me
apareceu e sujeitava-se a uma simples sentença clínica decidida em consulta
prévia de grupo oncológico. Inicialmente pensou-se em radioterapia, mas face à
sementeira granular dos pulmões, só a quimioterapia seria uma solução
paliativa. Por pouco tempo, é claro, mas quanto bastasse para algumas atitudes
e resoluções.
Aceitou o quimioterápico
sacrifício e prontificou-se a alimentar as suas esperanças falidas e os desejos
afectivos da esposa. Maldisse a sua vida de boémio, fumador inveterado e
coleccionador de bebedeiras. Pouco ajudou a família e pataca ganha pataca gasta.
No entanto parecia não ter remorsos. A mulher era limpa e vivaça, cozinhava bem
para ricos e pobres. Poderia safar-se nas limpezas domésticas. Ele tinha dois
grandes objectivos que incansavelmente repetia: o amor e a vingança.
Amor-próprio, muito pouco. Diz
que amava a mulher, agora que sentia o fio da lâmina, mesmo depois de muito a
ter maltratado. Na altura, os vapores do vinho subiam mais alto e rebaixava-se
com atitudes menos dignas, por vezes roçando a violência. A esposa, submissa,
produto de doutrinas religiosas anquilosadas e doentias, aceitava as
inexplicáveis punições. Desculpava-se com a sua educação, que já fora
alimentada a toque de chibata e berrata.
Num dos seus universais gestos de
afectividade serôdia, aceitou visitar, em Andorra, a filha mais velha que quase
fora escorraçada de casa à pancada por ter engravidado e abortado pouco depois.
Não teria sido pelo neto, filho de algum vagabundo, mas pelo que considerou ser
ignomínia familiar. Numa noite chegara à cabeceira da cama da rapariga, ainda
grávida, e metera-lhe a tesoura nas lindas tranças que se desprenderam dos
cabelos fartos e encaracolados. Houve gritos e intempéries emocionais. Poucos
dias depois a jovem fugira de casa com o homem malcasado que a engravidara.
Primeiro para Espanha, mas depois de abortamento espontâneo, rumou para
Andorra. Jamais falara ao pai desnaturado, mas sabedora do seu infortúnio
actual, acabou por reconsiderar as cinéreas quezílias e pediu-lhe que a fosse
visitar. Vivia com o mesmo homem de quem já tinha outro filho e gostaria que o
pai conhecesse a neta.
Depois de ter cumprido, com algum
rigor e sacrifício, a via-sacra da quimioterapia, acabou por melhorar
satisfatoriamente e ganhou peso, floresceu física e psiquicamente. Solicitou
pausa para visitar a filha e posteriormente cumprir os seus dois grandes
objectivos. Concedi-lhe cerca de dois meses.
Lembro-me, passado mês e meio, de
ver a esposa passar pelo sóbrio corredor do serviço de urgência, vestindo de
negro. Aproximei-me e perguntei-lhe pelo marido. Morrera, ou antes,
suicidara-se. Nem chorou, nem explicou. Pediu desculpa e continuou em direcção
à morgue. O cadáver ainda lá estava, à espera de autópsia, devido a morte
violenta.
(imagem da net)
Cerca de meio ano depois, a
secretária da unidade de oncologia diz-me que tem uma senhora, esposa de um
doente já falecido, que me procurava. Pela porta do consultório entra-me a
viúva, acompanhada duma filha que até ali nunca eu tinha visto. Apresentou-se
como a que vivia em
Andorra. Viera ao funeral do pai e agora voltara para ultimar
assuntos importantes. Ofereceram-me um embrulho simples e muito bem rematado,
dizendo que era uma lembrança do falecido, algo que já havia conversado comigo
e que pedira à esposa que me fosse entregue um dia, se morresse.
Palavra puxa palavra, sem
pretender remexer nas cinzas, perguntei como é que ele se fora suicidar, se até
andava muito bem e mais esperançoso no futuro, apesar do prognóstico reservado.
A mulher relembrou-me os dois grandes objectivos do marido: amar e odiar. Fez questão de realçar que o marido foi
vítima do ódio e não do amor. Só ela o sabia. Confidências e cumplicidades.
O seu grande sonho era ser rico e
deixar a família segura e suficientemente endinheirada. Nos dias atribulados da
sua vida, sempre se sentiu oprimido pelo patrão que nadava em fartura e
diversão. Sempre se achou subjugado e escravizado por esse patrão e jurou um
dia, etilizado ou não, que haveria de dar à sua família o lucro do seu trabalho
real, nem que tivesse de passar sobre o cadáver de quem o explorou. Dizia,
entre os amigos, “eu dei muita nota a ganhar, a esse sacana, mas um dia vou
sacar-lha. O que é meu é meu, sai-me do corpo”.
Parece que cumpriu. Poucos dias
após regresso de Andorra, engendrou um diabólico esquema e conseguiu assaltar a
rica mansão do seu ex-patrão. Não conseguiu matá-lo porque ninguém estava em
casa, mas a sua ideia era a vingança e quiçá reaver muito do que lhe dera de
lucro. Entendia que muito desse lucro também deveria ser seu.
Alguns dias depois, os seus antigos
desabafos acabaram por traí-lo e trazer suspeitas através dum ex-colega que o
vira rondar a mansão assaltada. Lambe-botas do patrão acabou por levantar
suspeitas. No dia seguinte à denúncia, a polícia dirigiu-se à sua casa para o
interrogar.
Do quintal, onde se encontrava,
viu algum aparato policial e, sub-repticiamente, refugiou-se no seu quarto
trancando a porta. Enquanto a polícia falava com a esposa ouviu-se um disparo…
O valor do roubo fora bastante
elevado, em jóias e dinheiro, mas sumira em poço sem fundo, por ignoto
encantamento. A polícia andou toda a semana em buscas, mas nada se
encontrou…até hoje. A própria esposa e filhos diziam desconhecer a existência
do produto do saque. Não sei se por estratégia ou desconhecimento. A verdade é
que a casa e periferia foram vasculhadas ao milímetro. Nada.
Hoje a esposa e restante família
está em Andorra, algures numa aldeola, onde parece que vivem desafogadamente,
na fartura e diversão tal qual vivera o patrão do falecido. O amor surtira
efeitos positivos.
O meu embrulho cuidadoso tinha um
objecto curioso. A arma do crime, um belo revólver que me havia prometido e já teria sido do seu avô. Nunca o vendera. Apenas o utilizara na fatídica hora e tempos
depois fora reentregue à esposa, pela polícia, uma vez que era objecto de culto
e colecção familiar.
Quando remexo nesse revólver,
parece-me ouvir aquele doente falando dos dois objectivos que nunca contara, a
não ser à mulher que durante vários anos tanto maltratara…
Bem longe, no âmago do seu
silêncio, a esposa vive numa perfeita simbiose de confidências e cumplicidade…
Comentários
Conte mais... está bem?
Obrigada.
Por detrás de cada história narrada existe uma realidade camuflada, mesmo que muito esmerilada.
Felicidades.