Coisas antigas... relembrar
(imagem da net)
Hoje perante uma certa indolência e tempo reduzido, vou transcrever um texto que publiquei, nos meus 22 anos de idade, e poucos meses depois do 25 de Abril. Na altura foi titulado como: "Factos e Anti-factos (3)". O "Jornal das Aves", em que o publiquei, era propriedade de um empresário, dono da Fábrica de Poldrães, na Vila das Aves. Era, nessa altura um semanário, com bons colaboradores, mas com o ruir da indústria têxtil, também se esfumou e não voltou. Cá vai o articulado, reciclado do fundo da minha mala de cartão:
"No mobilismo dialéctico que hoje
preside toda a natureza, depara-se-nos, no que concerne aos homens, um facto
curioso e absurdo que o hábito transformou em rotineiro. Nascendo
livres, por natureza, vêmo-los escravos de tudo e talvez mais do que julgam.
Prendem-se às coisas, aos outros e a si mesmos, quando, sem tergiversar,
apregoam aos quatro ventos a sua liberdade. Esta, hoje mais que nunca, é
manipulada pelo vício, banalidades e pessoas ávidas de poder e magnificência
que, sem escrúpulos, manietam os outros, cortando-lhes os direitos e
concedendo-lhes apenas deveres. No cerne desta questão reina a ambição humana
que, ora faz escravos e explorados, ora senhores e exploradores.
Jean-Jacques Rousseau, no início
do “Contrato Social”, escreve: «O homem nasceu livre, mas em toda a parte
está a ferros. Este julga-se senhor dos outros e é mais escravo que eles. (…).
Se eu apenas considerasse a força e o efeito que dela deriva, diria:
quando um povo é obrigado a obedecer, faz bem; mas se sacode o jugo, logo que o
pode sacudir, faz melhor, porque, ao recuperar a sua liberdade usa o mesmo
direito que lha arrebatou e se é justo que a retome, é injusto que a tirem».
É certo que o autor citado se
refere, neste contexto, apenas à inter-relação homem/homem.
Quando se visa o aspecto da
subjugação às coisas e a si mesmo, apenas o homem por vontade própria e firme
será capaz de se libertar. Aqui poder-se-á utilizar a trilogia «posso, quero,
realizo».
Às vezes, por rotina cinética,
somos conduzidos a pensar que a liberdade emana dos outros, que sobre nós têm
direitos, e se reflecte em nós próprios, mas tal cai no absurdismo de
introduzir o homem nas algemas da escravatura. Ora a liberdade reflecte-se na
natureza, e é dote específico e natural de todos. Se o homem não é livre, está
alienado. Alienar, segundo o mesmo autor, é dar ou vender.
Para melhor compreensão da
dualidade escravos/senhores, parafrasearei novamente Jean-Jacques Rousseau: «Um
homem que se faz escravo de outro, não se dá, vende-se para obter o seu
sustento. Mas um povo porque razão se venderia? Bem longe está o rei de dar
subsistência aos seus vassalos. São eles que lha dão e, segundo Rabelais, um
rei não se contenta com pouco. (…).
Dizer que um homem se entrega gratuitamente é uma afirmação absurda. É
ilegítimo, é nulo um tal acto, pois nele não participa o bom senso. Pensar o
mesmo de todo um povo, é imaginar uma multidão de loucos e a loucura não ergue
o direito.
Mas que cada um pudesse alienar-se, não poderia dar os filhos, que
nascem homens livres. A sua liberdade pertence-lhes. Só eles têm o direito de
dispor dela. (…).
Renunciar à liberdade é renunciar ao que mais qualifica o homem, aos
direitos da humanidade, aos próprios deveres».
Já vai longe o tempo da
escravatura declarada e consentida, é certo. Contudo, e por mais incrível que
pareça, vive-se a escravidão no trabalho, na vida doméstica e social.
Medite-se, conscientemente, alguns momentos e vejámos até que ponto se pode
estender o “senso próprio” da palavra liberdade.
In Jornal das Aves, 14/12/74"
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